Paulo Pinto
Ponto prévio (não necessário, mas conveniente): tenho 44 anos e tenho o que se pode chamar uma formação pós-superior. Licenciatura, mestrado e doutoramento. Nunca tive emprego nem contrato de trabalho estável, nunca soube o que era 13º mês, subsídio de férias, horário de trabalho, protecção social. Sempre trabalhei sem horário, fins-de-semana ou feriados, sem pontes nem tolerâncias de ponto, dormir umas 5 ou 6 horas, trabalhar de borla muitas vezes. Sei o que é a precariedade, os horizontes curtos, a incerteza do que virá a seguir. Bolsas e recibos verdes; agora retenção na fonte de 21,5%, Segurança Social de 29% sobre 70%, quase metade do "bruto" a esvair-se para impostos que não sei para que servem e uma protecção social que não sei se terei quando necessitar dela. Subsídio de desemprego se a coisa piorar, népias, e se amanhã ficar inactivo por um qualquer azar, doença ou acidente, bem que posso acender velinhas a S. João de Deus. Não participei, mas assisti e acompanhei com interesse e simpatia a manifestação de sábado passado. Considero que foi uma inédita expressão de civismo, de maturidade, de democracia e de consciência social. E tenho as minhas reservas sobre algumas das facetas atribuídas ao fenómeno.
Um dos problemas de Portugal sempre foi a incapacidade de entender o que um professor meu (desculpem estar sempre a citar, vai-não-volta, um professor meu, mas acreditem que não é invenção, este chamava-se Jorge Borges de Macedo e foi um dos que mais me marcou), chamava de "insuficiência do político". Trata-se da crença de que a esfera política condiciona praticamente tudo, e que os problemas se resolvem com mudanças na cúpula política, quando não de governo ou de regime. Dizia ele que foi uma das ilusões dos liberais, no século XIX, e dos republicanos, no final do mesmo. Percebeu-se, tarde demais, que não bastava criar uma Constituição (ou uma Carta) ou derrubar o rei para resolver os problemas. Portugal centra-se nesta espécie de maquilhagem política há demasiado tempo. É por isso que tenho algum desdém pela causa monárquica: não é uma falta de respeito pelas pessoas em si, pelo seu valor ou pela sua integridade, é apenas a constatação de que that's not the point (nunca foi, aliás, excepto em alguns momentos bem definidos). Ora, hoje enfrentamos uma grave crise, de que a manifestação de sábado foi uma natural e salutar expressão. Mas apontar as baterias ao(s) governo(s), às cúpulas ou à "classe política" é apenas um desabafo fácil, que alivia e satisfaz de momento, mas não resolve grande coisa e acaba por se tornar numa receita gasta. Acredito firmemente que Portugal tem a cúpula política que merece, com as qualidades e defeitos de outros sectores da sociedade. Se os nossos políticos não primam pela competência, pela honestidade ou pela transparência, é porque não soubemos, no Portugal pós-74, criar canais de promoção de elites bem preparadas, é porque o carreirismo partidário prevaleceu sobre o mérito, é porque os vícios do favor, do interesse pessoal, da mesquinhez ou do oportunismo de curto prazo se sobrepuseram à visão de Estado, ao interesse público, ao conhecimento activo das realidades e à capacidade de intervir em prol do bem comum. Na política como noutras esferas.
Ora, o grande alvo da manifestação foi a "precariedade" no mercado de trabalho, os recibos verdes, as expectativas frustradas de uma certa geração, etc. Não entendo muito bem porque há-de ser "a classe política" a principal visada. Pelo que sei, as empresas usam e abusam do expediente dos falsos recibos verdes, como forma de controlar gastos, de se esquivar a despesas com a Segurança Social, de garantir a "flexibilidade" dos seus empregados. Alguém gritou slogans contra? Por outro lado, há hoje um manifesto agravamento das clivagens sociais, entre salários reduzidos vs. acumulação de lucros, por exemplo, da banca. Alguém se insurgiu contra os bancos? Não dei por isso. Ponto 1.
A "insuficiência do político" adquire, em tempos de globalização, uma nova dimensão: não bastava o poder político estar muitas vezes condicionado de diversíssimas formas e por variados poderes paralelos, entre banca, aparelho burocrático do Estado, interesses corporativos, grupos económicos, sindicatos, lóbis diversos, chefias militares, autarcas, grupos de pressão transversais às máquinas partidárias, à escala nacional, como ainda por cima existe uma coisa chamada União Europeia, que impõe parâmetros, linhas e limites apertados. E, dentro e fora dela, todo um conjunto de condicionantes internacionais, de poderes e pressões à escala global. A margem de manobra é hoje muito mais estreita do que fora noutros tempos, não só nos instrumentos económicos ao serviço dos estados (como a desvalorização da moeda) como nas opções globais, estratégicas, a perfilhar. A crise actual foi desencadeada pela desregulação dos "mercados", os mesmos que agora ditam a lei e que a mais altas entidades deste país advertem que é preciso não incomodar, não perturbar e não desagradar. O neoliberalismo parecia condenado há 3 anos, mas hoje ressurge como se tudo isto tivesse sido causado por devaneios, incompetência, preguiça ou "socialismo". A memória, ou a falta dela, é uma coisa tramada. E os diktats germânicos impõem a via da austeridade aos países do Sul. Alguém gritou contra isto? Não ouvi. Ponto 2.
A insatisfação da geração à rasca é natural. Uma geração melhor educada e formada do que qualquer outra. Uma geração que atingiu um patamar de conforto e de bem-estar do qual não prescinde, como se compreende. Os seus pais e, sobretudo, os seus avós passaram por tempos e por dificuldades que são, hoje, impensáveis. É um bom sinal, desde que se veja toda a floresta e não se perca a vista na árvore. Já não se luta pela sobrevivência, pelo pão ou pela liberdade. Luta-se por um patamar acima, e é a elevação do nível de educação que o permite e que resulta, afinal, de mais de 3 décadas de regime democrático. É assim que deve ser, ao contrário dos dislates que se escrevem para aí, como as odes de Vasco Pulido Valente à ignorância e ao analfabetismo.
Eu sempre fui céptico em tempos de euforia e moderadamente optimista em tempos de crise. A manifestação de sábado passado significará o que as pessoas quiserem para o seu futuro. Pode ser um sinal de despertar de consciência cívica, de coesão social, de solidariedade e de esperança, num país de gente desconfiada, individualista e deprimida. Ou pode ser uma arma de arremesso ao serviço das querelas partidárias, de irresponsabilidade política, um fogacho para demagogos, líricos, alucinados e tacanhos. Está nas mãos de todos e de cada um, como sempre esteve.Veremos, como diz a canção, si saldré desta aventura o si nela moriré.
Diz muito e concordo. Se estudamos mais e melhor, se estamos dispostos à mobilidade, ao trabalho em equipa, por objectivos a recursos cada vez mais e mais qualificados, a exigências que não acabam... Também queremos mais e melhores condições.
Parece-me justo. Não?
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